Aluna cotista que perdeu vaga em Medicina por não ser considerada parda é aprovada em outra universidade pública: 'Já estava sem forças'
31/10/2025
(Foto: Reprodução) Aluna cotista rejeitada em Medicina conquista nova vaga
Em agosto deste ano, o g1 contou a história de Samille Ornellas, de 31 anos — à época, a baiana era aluna cotista do curso de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), mas havia perdido a vaga por não ser considerada parda pela instituição de ensino (leia mais abaixo os detalhes do caso).
➡️Quase três meses depois, quando procurada pela reportagem, ela disse que ficaria feliz em contar os últimos desdobramentos do caso. Mas só conseguiria conversar na manhã seguinte, porque “estava na aula de anatomia”. Teria Samille recuperado sua vaga na UFF?
“A universidade não teve nenhuma abertura para o diálogo, e o processo segue aguardando julgamento na Justiça. Mas Deus fez tudo certinho: fui aprovada em medicina na Universidade Federal do Oeste da Bahia. Eu nem lembrava mais que tinha me inscrito lá no começo do ano, mas passei agora, na 9ª lista de aprovados”, conta.
Samille diz que, ao receber o telefonema da UFOB, pensou que fosse um golpe.
“Toda aquela história me fez acumular traumas. Em 2024, eu ainda fui vítima de estelionatários que se passaram por advogados para supostamente me ajudar no caso da UFF. Perdi R$ 5,5 mil. Mas, dessa vez, deu certo: meu nome estava na convocação.”
O que diz a UFF? Em agosto, a universidade havia afirmado que Samille foi considerada inapta por duas comissões independentes e distintas, compostas por membros capacitados para atuar nas avaliações. Procurada novamente pelo g1 nesta quinta-feira (30), a instituição não havia respondido até a mais recente atualização desta reportagem.
Relembre o caso a seguir e entenda a reviravolta mais recente na trajetória de Samille.
‘Eu só pedia a Deus, me tire do lugar onde estou’
Samille foi aprovada em Medicina na UFOB
Arquivo pessoal
Em momento algum, Samille havia desistido de estudar Medicina. Antes de passar na UFOB, enquanto tentava reverter a situação na Justiça, voltou a estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Nesse intervalo, a jovem:
entrou em depressão profunda;
desenvolveu estresse pós-traumático e crises frequentes de ansiedade;
teve queda de cabelo
e viu seu corpo cheio de hematomas e descamações.
Só voltou a se olhar no espelho nesta semana, quando se arrumou e fez até babyliss para tirar as fotos na nova universidade.
“Ao mesmo tempo, eu tive ajuda de tanta gente, recebi tantas mensagens de apoio… Tem pessoas boas no mundo ainda. Mas eu que estava sem forças. Só pedia a Deus: me tire do lugar onde eu estou. Faça algo extraordinário na minha vida.”
É à fé que Samille atribui ter conseguido, após tantos baques, voltar a estudar medicina.
🧩Tudo pareceu se encaixar: um amigo da jovem havia sido transferido para Barreiras, onde fica a UFOB, e aceitou que morassem juntos. A família toda fez uma força-tarefa para comprar uma passagem de ônibus e garantir que Samille não perdesse seu primeiro dia de aula — a baiana foi do Rio de Janeiro a Belo Horizonte, de Belo Horizonte a Brasília e de Brasília a Barradas, até ser acolhida por todos na cidade.
✏️Ela matriculou-se na instituição de ensino em setembro deste ano, também por modalidade de cotas, e passou por todo o processo de verificação: envio de documentos para comprovar renda e avaliação de bancas de heteroidentificação. Desta vez, não houve nenhum transtorno ao reconhecerem que ela é, de fato, parda.
“Quando alguém fala a palavra ‘identificação’ ou entra em assunto de banca, eu imediatamente tenho crise de ansiedade, mesmo agora. Minhas mãos suam muito", diz.
"Para você ter uma ideia, quando chega qualquer e-mail da universidade, pode até ser o cardápio da semana, já fico nervosa, com medo que algo dê errado. Ainda preciso superar esse trauma, mas é questão de tempo, se Deus quiser”, afirma.
‘Estou muito animada’
Samille Ornelas, de 31 anos, autodeclara-se parda
Arquivo pessoal.
No último ano, Samille perdeu a avó e o pai. Ela os menciona diversas vezes ao longo da conversa, lamentando que nenhum deles pôde vê-la de jaleco.
De alguma forma, ela quer homenagear sua família. Agora, o foco é pensar no avô, que morreu há mais tempo, após um infarto — ele não conseguiu ter seus problemas cardíacos diagnosticados pelos serviços de saúde da região onde morava.
“Aqui na UFOB, eu vou lidar com quem também mora longe de centros urbanos. Nesta semana, vamos visitar um posto de saúde rural e uma aldeia indígena. Estou muito animada”, diz.
“Um dos meus propósitos dentro da medicina é não deixar morrer quem teve acesso limitado a serviços de saúde.”
🔴Caso UFF: passo a passo na Justiça
Aluna cotista perde vaga em Medicina por não ser considerada parda
Samille havia se inscrito no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) na modalidade de cotas para pretos e pardos, com renda familiar per capita inferior a 1,5 salário-mínimo. Seguindo o procedimento de combate a fraudes, ela gravou, como previa o edital da UFF, um vídeo curto, mostrando seu rosto.
O material foi avaliado pelo comitê de heteroidentificação da universidade, que julgou Samille como inapta a participar das cotas.
Veja um resumo do que aconteceu em seguida:
Samille entrou com um recurso na própria universidade. Gravou um novo vídeo, anexou fotos de diferentes etapas da vida e comprovou que havia anteriormente se formado em biomedicina pelo Prouni, exatamente na mesma modalidade de cotas para pardos.
A UFF, mais uma vez, declarou que “não foram encontradas as características fenotípicas” de uma pessoa parda.
Samille Cordeiro foi considerada "inapta" no processo de heteroidentificação.
Arquivo pessoal
A jovem entrou na Justiça e conseguiu, via liminar, um ano depois (janeiro de 2025), o direito de se matricular em Medicina.
“Eu morava em Belo Horizonte. Soube na sexta à noite que poderia ir para a aula de segunda-feira. Pedi demissão no meu trabalho no sábado, peguei um ônibus às 22h e fui para o Rio de Janeiro. Vim na correria, três dias depois de perder meu pai”, conta.
Após um semestre cursado, quando faltavam apenas duas provas para concluir o 1º período, um desembargador cassou a liminar de Samille e determinou que ela não teria direito à vaga.
“Fui jantar no refeitório da universidade com meus colegas, depois de um dia inteiro de aula. Deu ‘acesso negado’ no QR code. Achei que fosse algum problema do aplicativo, mas aí, entrando no sistema, vi que todos os meus dados tinham sido apagados”, conta.
“Minhas notas, minha grade horária, tudo tinha sumido, como se eu não fosse ninguém. Deixaram apenas um aviso no sistema: ‘matrícula cancelada por liminar cassada’. Meu mundo caiu. Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça”, afirma.
🔴Como funcionam os comitês?
Quando um candidato se inscreve no Sisu ou em algum vestibular de universidade pública, deve escolher se quer concorrer a uma vaga por ampla concorrência ou por cotas.
Vamos supor que um jovem de baixa renda se autodeclare pardo e seja aprovado para uma vaga reservada para as cotas. Como provar que ele realmente se encaixa nos critérios raciais da política pública? Basta a palavra do aluno ou alguém precisa confirmar que, de fato, ele tem direito ao benefício?
As universidades são livres para decidir como agir no processo de verificação. Elas podem:
aceitar apenas a autodeclaração, ou
implementar os chamados comitês de heteroidentificação.
🧑🏽🏫 Os comitês são bancas formadas, em geral, por cinco pessoas, que analisam a aparência física do candidato para decidir se ele é socialmente lido como negro.
➡️APARÊNCIA FÍSICA É O ÚNICO CRITÉRIO
Os comitês de heteroidentificação estabelecem que a análise dos candidatos deve ser fenotípica, ou seja, baseada nas características físicas, e não na ancestralidade. O que isso significa? Que não importa se a pessoa é filha de uma mulher negra ou neta de um homem pardo: a universidade quer avaliar como aquele aluno é "lido" pela sociedade no dia a dia.
A avaliação deve ser feita prioritariamente de forma presencial, e não por foto. O ambiente costuma ser filmado. E, quando houver impasse, a autodeclaração deve prevalecer.
No edital do Sisu da UFF, está previsto que a avaliação seja à distância.
“O vídeo deverá ser realizado preferencialmente com fundo branco e iluminação adequada, focando principalmente o rosto do candidato. No vídeo, deverá aparecer somente o próprio candidato, que deverá falar o seu nome completo e uma das seguintes frases, de acordo com sua raça/etnia e/ou modalidade de ingresso: “Eu me autodeclaro PRETO” ou “Eu me autodeclaro PARDO” ou “Eu me autodeclaro INDÍGENA” ou “Eu me autodeclaro QUILOMBOLA”. Em seguida, antes de finalizar o vídeo, o candidato deverá filmar o seu próprio rosto de perfil, tanto do lado direito quanto do lado esquerdo.”
Esse tipo de comitê foi considerado legítimo pelo Supremo Tribunal Federal, no debate sobre a legalidade das cotas em 2012. Além disso, a portaria normativa nº 4, publicada em 2018 e atualizada em 2023 pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, define que, nos concursos públicos, "a comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pela pessoa".
LEIA TAMBÉM: Quem é pardo para os comitês que decidem quais alunos podem entrar nas universidades por cotas raciais?
🔴‘Analisaram meu crânio’
Samille Cordeiro, que perdeu vaga do Sisu por não ser considerada parda, na adolescência.
Arquivo pessoal.
Para tentar reverter a situação na Justiça, os advogados de Samille orientaram que ela fizesse uma avaliação com um antropólogo.
“Era uma tentativa de provar que tenho as características de uma pessoa parda. Ele analisou meus traços, o formato dos meus lábios, o meu nariz e o meu crânio, para provar que tem origem negroide. O laudo mostrou que tenho todas as características, mas isso não bastou”, afirmou.
Samille Cordeiro, que perdeu vaga do Sisu por não ser considerada parda, quando criança.
Arquivo pessoal
O que disse a UFF
Nota Oficial caso Samille Ornelas, enviada em agosto de 2025
A Universidade Federal Fluminense (UFF) esclarece que o caso envolvendo a candidata Samille Ornelas está atualmente sob a esfera judicial, e que a instituição cumpre integralmente as decisões emanadas pelo Poder Judiciário, sem interferência ou autonomia decisória neste estágio do processo.
Ressalta-se que a candidata foi considerada inapta por duas comissões independentes e distintas, compostas por servidores e estudantes que recebem, regularmente, formação conduzida por especialistas na área dos estudos étnico-raciais. Portanto, são membros capacitados para atuar nas avaliações, com formação específica em letramento racial.
A UFF acredita firmemente na relevância das políticas de reserva de vagas para ingresso no ensino superior e tem atuado de forma contínua em sua implementação e aperfeiçoamento, com base nos princípios da justiça, diversidade e compromisso com a função social da universidade pública. A instituição busca assegurar, com máxima responsabilidade, que seus processos seletivos sejam conduzidos de forma transparente, isonômica e em conformidade com a legislação vigente.